quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Cajazeiras Mambembeia no Conchavódromo

   memória   

Reveja um artigo inteligente, bem-humorado de autoria de Chico César, que conta a história do antigo Grupo de Teatro Terra e a passagem do grupo por Brasília, durante o Projeto Mambembão de Artes Cênicas. O artigo foi publicado no Jornal O Norte, página 5, em julho de 1984.

Cajazeiras Mambembeia no Conchavódromo

por: Chico César (ao pessoal da FPTA).

Os lotes e superquadras de Brasília, palco costumeiro de rachas, rixas, cochichos e conchavos de parlamentares, e, vez por outra de algum concerto contemporâneo feito por centenas de buzinas, vozes e panelas, está sendo abrigo provisório, durante esta semana, de outros atores e outras apresentações. Trata-se do Projeto Mambembão. Nele, estão 14 meninos e meninas de Cajazeiras, integrantes do Grupo Terra, que foram ao Distrito Federal para apresentar a peça “Beiço de Estada. ”

Depois de mambembear “o que há de bom” em Brasília, ao lado dos grupos Só-diretas, Pro-diretas e Pós-diretas (?) o Grupo Terra se apresentará em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Não se pode dizer que eles estejam procurando Sarney pra se coçar, mas as notícias que chegam é que, ao pisa concreto na cidade-avião voo rasante – assim cantada por Ednardo, não silenciaram e interviram no poema práxis inaugurado por Niemayer e Juscelino.

O repórter Luis Turiba, do Jornal de Brasília da última quarta-feira, conta que “eles deitaram falação sobre os assuntos do momento: Roberta Close, sucessão presidencial, punk-break, Lula, Zé do Norte e miséria”. Insatisfeitos com tanto bate-boca, ainda “acuraram o repórter de malufista. ”

A crítica do Última Hora, também de Brasília do mesmo dia, considera que “Beiço de Estrada” é “um trabalho marcado pela juventude e entusiasmo de um pessoal que escolheu o teatro para brincar a sério com a vida. ” Para o crítico deste matutino os meninos de Cajazeiras estão aí, pedindo passagem e dispensando afago da cabeça. Nem precoces nem iluminados. Simplesmente, gente de teatro. ”

Um dos fatores que de imediato está chamando atenção do público e da crítica do Planalto Central do País”, onde Caetano Veloso se dispôs a organizar o movimento e orientar o carnaval, é a pouca idade dos garotos de Padre Rolim. A média é de 18 anos, o mais velho é diretor e tem 23, enquanto dois deles têm apenas 15 e para viajar precisam da autorização dos pais e do Juizado de Menores da Comarca de Cajazeiras.

Nos meninos observa-se ainda o florescer de um buço, leve ameaça de bigode em futuro longínquo. As meninas, como dirão suas próprias mães, “ainda estão em formação” Algumas delas, como se dizem Nova Olinda para a primeira menstruação, “quebraram o pote” a poucos dias: Estão adolescendo juntos há nove anos. Descobrindo e inventando.


A impressão derradeira que se tem do grupo não é a do sentimento paternalista. Isto é o que “Os Heróis de Cajazeiras” como são chamados pela crítica brasiliense, mostraram há alguns meses, quando arrumaram as malas e, só com as passagens de ida, foram para São Jose do Rio Preto, onde participaram de um festival nacional de teatro e receberam a terceira colocação. O público, segundo os integrantes do “Terra” queria o primeiro lugar para “Beiço de Estrada” e protestou. O resultado foi a realização de três apresentações, no Teatro Eugênio Kunset, em São Paulo, com o apoio da classe teatral paulista.

A história desse grupo começou em um fundo de quintal, de uma rua de nome Higino Rolim. Era uma vez, na cidade de Cajazeiras, musa de Sergio Ricardo em “Noite de Espantalho”, uma patota de meninos e meninazinhas que brincava de fazer drama, usando os lençóis e toalhas de suas mães como pano-de-roda para ser o circo, ambiente clownesco para proteger a emoção infanto-juvenil das brigas entre os caciques das oligarquias políticas locais.

Para sonhar junto com estes pirralhos, a meninada pagava um palito de fosforo, um maço de cigarro vazio ou um papel de bala, sob a ameaça, e claro, de levar um ou outro cocorote ou tapa-ôi, materno ou paterno, quem sabe até de um irmão mais velho. O poder reprimindo e tentando negar o prazer. O lúdico sobrevivendo e antropofagizando: a patota se institucionalizou e passou a se chamar Grupo de Teatro Mickey. A Disneylândia jamais conceberia o simbólico como pagamento de sua fábrica de mitos. A brincadeira coisificada foi negada no sertão da Paraíba e pra sempre será em qualquer lugar do mundo onde houver meia dúzia de pessoas dispostas a fazer artes e manhas, tardes e manhãs, inclusive noites.

Com a formalização da patota, aí veio “Chapeuzinho Vermelho” e “Branca de Neves”. Depois o início da apropriação socialização de símbolos do cotidiano como “Os mutantes”. Posteriormente, a criação com elementos surreais em “O Sonho da Aranha” e de novo o regional, com “O Bando de Ciganos” e “O Barraco”. O palco já não era só o quintal. Com o passar do tempo, choveram convites para apresentações em colégios, grêmios, festas e finalmente, o corte com o cordão umbilical das preocupadas mães cajazeirenses; a participação nos festivais de teatro infantil em João Pessoa. Nessas viagens, ainda embaladas pelo pó de pirlimpimpim de Sininho, a troca do Mickey pelo Terra montagem e a de “Borboletas” Era o começo da década de 80 e eles estavam grandinhos. O país se preparava para as eleições de 82. A anistia havia vindo restrita e parcial. Eles começavam a viver isso.

Com “Borboletas”, veio o contato primeiro com a Censura Federal em Campina Grande. A peça foi proibida para menores de 18 anos e nenhum dos atores havia atingido ainda a maioridade, mas todos já questionavam no espetáculo a ganância, a exploração de mão-de-obra, o poder. Os inocentes foram chamados de comunistas e de subversivos e seguidores de Karl Marx. Ninguém entendeu nada, e na volta para a cidade natal, depois da geral que foi dada pelos censores, Cajazeiras olhou atravessado para os “esquerdistas” isto resultou em um ano de silêncio e pesquisas. É possível que alguém deles, depois de tanto alvoroço tenham procurado ler “O Capital” em quadrinhos. Grande parte, porém deve te achado melhor, mais saudável e menos chato, apenas ver o retrato do “mestre” em camisetas, onde está escrito: “trabalhadores de todo mundo...”

Após o silêncio de quem sempre está aprontando alguma coisa, veio a montagem de “Beiço de Estrada”. Projeto Vamos Comer Teatro, Festival de Areia, São José do Rio Preto. Agora, Brasília. Depois e sempre, o Brasil. E sempre o mundo. A presença deles no concha-vodromo, logo notada pela imprensa local, pode ser apenas um aviso com endereço certo. Nada de indiretas. Eles são meninos bem-comportados, alunos aplicados, mas, não estudaram na cartilha da Aliança Para o Progresso e se negam a fazer fila diante do Colégio Eleitoral. É isso aí, crianças de Cajazeiras, “Beiço de Estrada”, neles. Já.




fonte: Jornal O Norte. Pág. 5, 22/julho/1984.

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