sábado, 3 de setembro de 2016

As Aventuras do "Capitão Brechó" (IV)


A placa do Leão do Norte
Francisco Alexandre Gomes

No coração do céu azul, marcava o cronômetro do Rochedo dos Século, exatamente, meio dia. O calor era asfixiante, nem a mais leve brisa denunciava sua existência na quietude das folhas das árvores, que existiam no local da atual praça Coração de Jesus. Não. Nenhuma aragem vinha diminuir o sufocante mormaço aquela tarde de outubro. Poder-se-ia pensar que o astro rei, com seus raios, látegos de fogo, queria transformar a terra numa fornalha ou no purgatório de Dante, para expiação dos erros da humanidade.

Homens rudes, com suas caras tostadas pelo sol, seríssimos ou jubiloso faziam as compras da semana. Havia pouca gente na feira. Àquelas horas, muitos já haviam voltado os seus sítios, que, muitas vezes, ficavam distantes duas, três ou quatro léguas da cidade.

Naquele dia, estava o “Capitão” mais do que satisfeito. A bom preço, vendera a carne seca de dois carneiros gordos que trouxera, sem ter necessidade de andar de porta em porta de rua em rua a oferecer sua mercadoria, como sempre fizera. Como já envelhecia a tarde, ele sentia fome. Procurou o “Café Leão do Norte” para fazer um quebra jejum. O “Leão do Norte”, é bom que se explique, era naquela época a única casa que vendia refeições em Cajazeiras. Apesar de ser a única no gênero, a freguesia não era lá essas coisas de vantagens. Como a renda não lhe era suficiente, a proprietária, uma viúva quarentona, recebia em sua casa às escondidas casais para encontros amorosos. Geralmente, velhos fazendeiros e suas camufladas amantes.

O “Capitão” já havia feito refeições na “Leão do Norte”, três ou quatro vezes antes, mas nunca pensou que ali fosse também casa de tolerância. E, na verdade, nunca ria talvez, saber se após a ligeira refeição que fez naquela tarde não houvesse perguntado a Inocência, a proprietária do café, se ali na casa dela não tinha “privada”, posto que estava querendo fazer uma necessidade fisiológica. Inocência respondeu-lhe que sim. No final do quintal, havia uma.

Após passar pelo corredor da residência e, em frente aos dois únicos quartos da casa, cuja intimidade dos mesmos era resguardada por duas cortinas de pano transparente no local das portas, o “Capitão” viu em cada aposento em trajes de Adão e Eva um casal relacionando-se intimamente. A cena que presenciou despertou-lhe espírito humorístico e se tivesse a cultura de um Bocage ou Walter Scott, certamente, para não dar na vista, teria dito ou pensado num repente: Se tendes boas montarias, faites vos devoirs, preux chevaliers!

Mas não tendo dito isto nem pensado, após pagar a conta, agradeceu a dona do café e saiu. Mas que coincidência! Na calçada do café, um cão e uma cadela estavam em cio, unidos pelo amor canino. Aí o “Capitão” teve uma boa ideia: voltando a sala e chamando a proprietária do estabelecimento ao lado disse: “Cris Jisus, Sinhá Inocença! Mande apregá de novo a praça do seu hoté, qui ele tá caída aí na carçada”. A mulher o acompanhou até a porta e vendo o cão e a cadela unidos pelos sexos exclamou com espanto: “Virge nossa! Qui iscaindo horrive, e logo na porta duma pobe muié Cuma eu”. O “Capitão” riu um so sarcástico e deixou o “Leão do Norte”.

Melhor no mato do que em casa.
Francisco Alexandre Gomes

Era Rosa de Juca uma cabocla muito bonita e cheia de facécia. Tinha olhos negros como a noite, boca pequena, lábios sensuais, um belo e constante sorriso, e cabelos e anelados. Seu corpo era tão bem feito que, creio causaria inveja a muitas Brunas. Haviam vindos ele e marido das bandas do Ceará e em terras do “Capitão” foram morar. A princípio, não se ligou muito à família d meu trisavô, entretanto, com o passar do tempo fora se chegando mais e mais e, por fim, ei-la já como comadre do “Capitão” e de Dona Honorina que haviam sido padrinhos de um filho seu na Igreja de São João do Rio do Peixe.

Andava Juca, o marido, já na casa dos sessenta anos, e ela havia há pouco tempo completado trinta e cinco primaveras. Nunca, porém por causa da dessa semelhança de idade, entre ela e esposo, ninguém dela falou mal. Nunca também homem algum pensou em lhe dizer lérias, pois Dona Rosa era mulher de muito recato e vivia só para o esposo. Nunca lhe passou pela mente a ideia de enfeitar a cabeça do Juca com cornos. Não. Não era nem doida para isso, pois por causa da infidelidade o marido havia acabado com a vida da primeira mulher e do suposto amante dela. A verdade é que gostava muito do marido e com ele vivia satisfeita e feliz.

O “Capitão” morria de amores pela moradora, mas a ninguém demonstrava o interesse que tinha pela comadre Rosa. E certo, que, aqui e acolá, facilitava algum empréstimo ao compadre Juca ou fiava-lhe alguns quilos de carne de sol, mas ninguém, iria pensar que por trás dessa generosidade houvesse outras intenções não tão fraternas.

Certo dia, o “Capitão” falou à comadre dos seus sentimentos e a convidou para um encontro, mas esta deu-lhe um não de casa fechada. Mas estava o “Capitão” e não que inclinado pela comadre e não perdia tempo em suas investidas. A comadre continuava negando-lhe um sim. Era inexorável aquela atitude da mulher. Dona Rosa já não suportava as investidas do “Capitão” e não queria dizer ao marido o que estava lhe acontecendo, pois sabia que se assim o fizesse uma desgraça na certa aconteceria. Como era muito amiga de Dona Honorina, resolveu contar-lhe o que lhe estava acontecendo. Dona Honorina que era como quase todas as mulheres cheia de ideias, combinou com a comadre Rosa que ela dissesse ao “Capitão” que aceitava a sua proposta para um encontro com ele. Ficou acertado entre as duas mulheres que Dona Honorina, a mulher do “Capitão” iria no lugar da outra ao tão esperado encontro. E no lugar, dia e hora marcados os dois se encontraram. Era noite escura e caía uma chuvinha fina. A mulher nada dizia, e o “Capitão” sem perda de tempo fez o que há muito vinha pretendendo fazer. E depois que tudo havia acontecido, Dana Honorina falou-lhe: “Veio sem veigonha, eu num só sua cumade Rosa, não. Só Hanorina, sua muiá. Só assim eu ia descobri suas tramóia. Veio sarfado”.  Percebendo que fora enganado pela mulher, o “Capitão” respondeu-lhe num repente: Cri Jisus minha veia! Eu nunca haverá de maginá qui você fosse muito mió no mato do que im casa”.


O remédio: trinta e dois ovos de capote
Francisco Alexandre Gomes

O ano era o de 1878. O mês, novembro e o dia, uma quinta feira. Naquela manhã, o “Capitão” saíra de casa com a firma resolução de preparar a baixa do arroz para o plantio, caso houvesse inverno no ano vindouro. Não seria possível que 1879 também fosse ser seco.

O sol andava depressa no infinito e já estava a quase a pino no meio do céu azul. O “Capitão” era um trator de enxada na mão no destocamento da terra. A poeira da terra escanhoada misturava-se com o suor que lhe cobria o rosto. Ele sentia que suas forças começavam a diminuir com o passar das primeiras horas de trabalho. Mesmo com suas forças vitais diminuídas ele continuava atacando com fúria o trabalho pesado, como se pretendesse provar a si mesmo que ainda era homem. Pau para toda obra. Que a idade nunca iria transformá-lo num incapaz até de cumprir os seus deveres matrimoniais para com a própria esposa. Isso nunca.

Sempre fora um homem fogoso, que toda hora era hora, que nunca negara fogo. Lembrava-se que só deixava Hanorina em paz quando ela estava de “dieta”, e, como não suportava a falta do que gostava muito, ia à procura de alguma que estivesse disponível. O que vinha lhe martelando à cabeça. Que diabo de falta de interesse por Honorina era aquele que estava tendo? Não sabia o que era aquilo. Já havia tomado chá de barba de bode, de crista de galo, e estava comendo muito coentro e quase um quilo de cebola por dia, mas nada disso estava dando resultado. Será que estava virando menino? Não. Antes morrer do que voltar a ser menino.

Absorto em seus pensamentos o “Capitão” continuava a retalhar o peito da terra, como retalhava o peito dos carneiros que vendia nas feiras, mas a cada instante mais lhe fugiam as forças. De repente, ei-lo diante de um ninho de galinha da Guiné, que estava camuflado debaixo de uma moita de jurema. Seus olhos vibraram de alegria. E, naquele instante, teve uma ideia: se comesse os trinta e dois ovos achados no ninho, suas forças, certamente, voltariam e, talvez, naquela noite, não negasse fogo como espingarda velha.

Resoluto tomou do achado e levando-o para o leito seco do rio, colocou os trintas e dois ovos debaixo de um monte de areia e em cima fez uma fogueira. Alguns minutos depois estava pronto o cozido. Calmamente, mesmo sem sal, comeu os trintas e dois ovos de capote de uma só vez. Acreditava, cegamente, que comidos de uma só vez aqueles ovos seriam o remédio certo para todos os seus problemas.

Uma hora depois, voltava o “Capitão” a casa. Estava se sentindo muito mal. O estômago lhe doía. A cabeça estava pesada, e a vista escurecia. Ouvia um estranho zumbido. E, chegando a casa, a mulher lhe preparou imediatamente um forte chá de macela com folhas de mamoeiro, mas o “Capitão” continuava muito doente. Três dias e três noites esteve ele à cabeira da morte. Dias depois Joaquim Ferreira, seu compadre e amigo, veio lhe fazer uma visita. Ao chegar foi logo dizendo: “Subi que voimicê estava amurriado e vim lhe fazê uma visita, mais me diga se é verdade que o cumpade cumeu trinta e dois ovo achado no mato”. O capitão olhou-o seriamente e respondeu-lhe: “Cri Jisus, meu cumpade! É verdade. Eu cumi trinta e dois ovo de capote duma só vez pra vê se recuperava dois que instão quage perdido, mas veja voimicê o que foi que me aconteceu. Meu cumpade, carro veio e sem roda, num vai pra frente mermo que seja puxado por boi novo”. Disse o repente e sorriu largamente. 



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